domingo, janeiro 06, 2008

Transcendência dos Sentidos

Estava ela alí sentada no bistrô a mais de duas horas. Sozinha, acompanhada apenas pelo cigarro e o café. As marcas tênues da idade lhe marcavam o sorriso, mas os olhos pálidos ainda revelavam, profundos, a essência que lhe fora secretamente escondida com o decorrer dos anos, com o abandonar das inocências.

A inquietude lhe tomava a respiração, desregrada ela tragava o ar que cheirava a uma solidão medida, uma solidão que só se conquista com a aceitação de sua condição humana, sua eterna finitude. Quando isso havia lhe acontecido? Quando resolveu ela, abrir mão de sua liberdade? Quando foi que se aprisionou fora de si e legitimou a morte de suas fantasias? Quando optou por sua vida tão medida? O óbvio cotidiano lhe fugira das mão, quis deixar cair.

Sua vida lhe subia aos olhos junto com a fumaça do cigarro e seu coração pintava nostalgias preto e branco. Os tiros criminosos que lhe arrancaram a ingenuidade, as flechas desferidas em seu peito, os segundos que dividem uma vida em dois. Um tiro já lhe bastava; os outros foram o gozo sádico de quem tira o que não já não tem.

Tinham lhe tirado algo tão especial, tão seu, que ela já não sabia mais dar nome ao perdido. Com a alma nua, não sabia mais o que pensar do que fora feito de si mesma. Sua nudez de espírito lhe apavorava e confortava, era ambiguamente dolorosa e de uma vivacidade deliciosa.

Na borra de café no final da xícara, viu sua infância. Suas fugas lúdicas tão cheias de lirismo que sua condição adulta lhe havia tomado. Tudo carecia de um conformismo difuso, de uma aceitação do que talvez nem sempre lhe fosse cabível.

Repousou o queixo na mão direita, com o braço apoiado na mesa. Assistiu a rua resplandecer. Fechou os olhos. Ouviu o universo inteiro, dentro de uma caixinha de segundos, seus olhos oceânicos despertavam e; foi no vôo de uma pomba doente que seus lábios dilataram, e como borboletas que se espalham no erguer de um novo dia, seu sorriso se fez.

Pediu a conta ao garçom, pegou seu cachecol verde que estava ajeitado delicadamente na cadeira. Andou em direção à porta com a coragem e o choro soluçado de quem vem ao mundo... E partiu.

3 comentários:

Aquela garota disse...

Cada dia descubro uma coisa nova em você, sorte a minha serem coisas sempre boas! Como sempre, adorei algo que você fez.

Clara Mazini disse...

Nós precisamos vir e viver o mundo. Senão que histórias teremos pra contar, né?

Isadora Ferraz disse...

são dos lugares mais surpreendentes que nós nascemos..

saudades =**