quarta-feira, setembro 15, 2010

Atonal Cotidiano

Estava tudo programado. O horário do trêm, o ponto de encontro, o caminho até a exposição, os prováveis quadros que seriam vistos e talvez até os tópicos a serem discorridos desprenciosamente durante a tarde ensolarada de segunda-feira. Estava tudo programado e posto à mesa como um dia dos mais quaisquer.

Haviam se conhecido a pouco e ainda notava-se na fala o tom cauteloso de quem explora um território desconhecido e encantador, o cuidado de quem anda no escuro com os olhos bem abertos e curiosos. Seria um encontro comum para quem ainda está por se conhecer, mas as forças mitológicas do deus das travessuras e da trapaça, Loke, pareciam crescer em torno da tarde e conspirar contra o que lhes parecia tão cotidianamente conveniente. Seria um gozo ver algo tão simples se esvaindo por entre as alamedas dos desencontros.

Trocavam passos calmos e orientados quando o solo se desfez e da previsão fez-se ausência: Todas as portas se fechavam ruidosas em face dos dois desconhecidos, suas expectativas se desvaneciam como dentes de leão ao vento.

Mas em meio as gargalhadas de Loke deu-se o improvável: Esqueceram-se os dois das imposições divinas e riram ao léo, despreocupados já com o que haveriam de ser. Sem se darem conta, soavam atonais e unissonos sobre o concreto da cidade. Languidos formavam uma só massa de alegria e cumplicidade.

O deus, frustrado, proferia impróprerios e os transeuntes não entendiam de onde vinha toda a felicidade que os dois difundiam pelas ruas, em plena segunda-feira. Desdenhavam talvez por ainda terem os corações muito pequenos para compreender.

O mundo se fez novo e os desconhecidos optaram por serem inomeáveis. Já não importava o que eram. Descobriram um novo afeto no coração do caos e pela primeira vez depois de muito tempo, o globo giratório terrestre parecia girar corretamente dentro de sua órbita desorientada. As pilherias de um eram o abrigo do outro.

A noite finalmente repousou seus olhos no par e o luar resolveu reverenciar a graça mundana. Cantavam, caminhavam e careciam do toque um do outro, de mãos que se encontram e desencontram, de abraços que se cruzam e descruzam. Continuaram a caminhar e quando menos perceberam o dia havia acabado com a mesma rapidez que se formara. Se dirigiram então a lados opostos e deixaram suas sortes para o vir a ser que lhes aguardava, felizes.

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